Dreams are renewable. No matter what our age or condition, there are still untapped possibilities within us and new beauty waiting to be born.

-Dale Turner-

domingo, 6 de março de 2011

Aeróbico

- Voltara a respirar.  Sim, porque havia já algum tempo que Lourenço não o fazia. Mas durante este tempo de pura anaeróbia cada célula de seu pulmão ardeu de vontade. Por dentro, só o que se ouvia eram os gritos desesperados de alvéolos sedentos pela fresquidão inebriante do oxigênio. É bom que se deixe claro, no entanto – Lourenço fora bravo. Lutara habilmente contra o impulso instintivo de sugar o ar. Ignorou a tendência natural do vácuo de se preencher e seu olfato permaneceu no escuro. Não por muito tempo.
É claro que ele falhou. Em missões suicidas falha-se mesmo quando obtém-se êxito, disseram. Em missões suicidas o sucesso é meramente uma questão de quanto tempo você leva até levar a falha a cabo. E ainda, inevitável como é a falha, teria sido melhor se não houvesse falhado. Respirar é um risco sem o qual todos estariam melhores. Quando da inalação do ar ao seu redor, não há proteção contra nada. E você está completamente suscetível ao poder inebriante de todas as fragrâncias poderosas espalhadas por aí. É condenação.
Lourenço respirou, e, como não podia deixar de ser, condenou-se. Bastou o primeiro instante de inalação. Bastou a primeira tragada desesperada, sedenta de ar refrescante, e Lourenço já caíra. No primeiro grama de oxigênio adentrado ao sistema escondia-se uma fragrância pequenina. Era suave, era quente. Doce e quase infantil. Tinha um quê floral misturado a uma ardência, uma nota apimentada. Ele não conseguiu acreditar na maravilha daquele cheiro. Era difícil para ele entender a precisão com que alguém havia desenhado aquela fragrância para ele. Não era possível, simplesmente não era. Estava bêbado de prazer envolto no preenchimento absoluto que aquele cheiro o fazia sentir, para variar. Fora isso, só o que conseguia era se odiar por ter demorado tanto a respirar. Queria que aquele cheiro fosse toda a sua existência. Cada célula sensorial em suas narinas vibrava em regozijo pela maravilha daquela informação emitida ao cérebro. Pela maravilha que aquelas propriedades permitiam que o cérebro construísse em sensação. Nunca neurônios realizaram sinapses tão exuberantes. E por alguns instantes isso foi tudo. Por alguns instantes, Lourenço era só sentir. Era um bolo sensorial envolto em puro prazer. Nada mais importava, nem voltaria a importar, porque ele encontrara um cheiro e por ele tudo valia a pena. Nem tanto.
Eu ainda me lembro de quando vi acontecer. Lembro de quando ele engasgou. Num minuto ele tinha os olhos fechados e espremidos de tanto prazer; no outro só o que se ouvia era o engasgar arrepiante; seus olhos arregalados de dor me hipnotizavam.  Ele tossia forte e agonizava, sufocado de decepção. Ele descobrira. Achara em sua primeira respiração a razão pela qual respirar era um risco tão grande. Disfarçada na doce fragrância que o arrebatara, estava um gás venenoso, praticamente letal. E aquele gás parecia estar precisamente desenhado para envenená-lo na mesma proporção em estava para apaixoná-lo. O veneno era metálico, era inorgânico. O veneno era de um aroma turbulento, assustador. O veneno era um assassino frio. Levava a cabo sem pena a vida de cada alvéolo que ousava tentar quebrar suas moléculas. Seus elementos não podiam se separar porque estavam determinados demais, unidos demais na mesma intenção destruidora.  Tudo o que o veneno deixava era a vontade de que acabasse. Só o que Lourenço queria era o fim. E ainda ele nunca parecera tão longe.
Mas ele chegou. Quando acabou, encontrei Lourenço jazendo no chão. Ele era a própria decepção. Seu rosto encontrava-se desmoronado e nada que eu já tinha visto se comparava àquela tristeza antiga que eu notei em seu rosto. Repentinamente agora seus olhos me pareciam estranhamente anciãos para seu corpo jovem e bonito. Era como se seus olhos tivessem visto muito mais do que todos. Era como se todas as dores e decepções de todas as eras tivessem achado abrigo na dor que residia em seus olhos agora. Eu tive medo de que ele resolvesse nunca mais respirar. Tive medo de que o trauma fosse grande demais e ele resolvesse levar a missão suicida a cabo desta vez. Mas não. Como acontece com todos, Lourenço achou um jeito de continuar respirando. É claro que seus pulmões estariam danificados para sempre pelos danos daquele veneno. Em sua ânsia de absorver o cheiro maravilhoso do início, Lourenço respirara fundo demais, sedento demais que estava pela sensação daquele cheiro. E agora seus pulmões estariam prejudicados para sempre. Mas ainda assim,ele voltou a respirar. Lourenço achou um jeito de perdoar a vida pelo veneno que ela pusera em seu caminho. E Lourenço voltou a respirar. Devagar. Com cuidado. Que um dia Lourenço ache a fragrância de que precise. Eu sei que ele vai.
- esta é uma bela estória. Mais uma vez você arrancou a tristeza escondida em mim e esfregou-a por todo o meu rosto.
- foi você que quis ouvi-la.
- está tudo bem, não reclamo. O masoquista em mim precisa ser alimentado às vezes. Não sei por que, mas tenho a impressão de já a ter ouvido. Essa estória me soa familiar.
- você realmente não consegue se lembrar?
- Não totalmente, mas a descrição da fragrância me soa familiar. Eu sei que sim. Essa história eu já ouvi.
O garoto tentou se lembrar. Olhou fixamente para a parede, desesperado por uma lembrança. Estava tão absorto que não percebeu a ponta de uma faca afiada perto de sua mão. Ao mover a mão, inevitavelmente tocou a faca e um corte pequeno desenhou-se na ponta de seu dedo. Uma dor pequena, mas muito real e aguda, desenhou-se em seu rosto por causa do corte. O outro garoto perguntou, em resposta:
- você está bem?
- estou. E me lembrei de onde conheço a história. Estranhamente, ela me lembra de quando me falaram do  amor. 
Ah sim, o amor é aeróbico.